sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Pensar a crítica e a cinefilia hoje (II)

Equipa da blogosfera (a azul) vs. equipa do CINEdrio (a preto)

Leia a parte I aqui

Apesar de tudo, a maior parte da crítica continua viva e resiste (ou continua viva porque já só resiste), mas não marca tendências como antes nem escreve frases que duram décadas (como o "travelling ser uma questão de moral") nem produz pensamento, apenas ante-produz reacção à opinião (como no caso do Batman no jornal Público). Acção que se alimenta da reacção mais epidérmica, já que quase nada de palpável fica das polémicas que se vão encenando de x em x tempos. Também não arrisca ou experimenta (será verdadeiramente livre? Claro que não, também não $ou ingénuo a e$$e ponto): por exemplo, os jornais, mesmo que sejam lidos maioritariamente na sua versão online, trabalham com formatos rígidos ultrapassados, esforçando-se pouco ou nada para reformular o medium do pensamento cinéfilo. 

Será que um dia será levada "à letra" a frase de Jonas Mekas no artigo «Notes on the  New American Cinema»: "film truth needs no words"? Talvez um dia, mas até lá, a crítica é escrita e é lida - a posição neste momento parece ser esta e deverá continuar a ser esta por muito tempo. No debate que referi atrás, fala-se do número 5 da revista Rouge, saído em 2004, em que se ensaia, de modo a meu ver muito interventivo, uma nova linguagem de análise e crítica do cinema, mais próxima aliás do filme de Godard do que dos proverbiais vídeo-ensaios. Nessa edição, como se lê na introdução, os redactores procuraram "pôr em cheque a linguagem [escrita]", privilegiando a imagem em detrimento do texto. O resultado, vários artigos de grandes figuras do mundo do cinema praticamente só com stills, é magnífico e desconcertante: sente-se, aqui, a formação de uma crítica de cinema que age sobre o leitor, provoca-o, não pelo "gosto" veiculado, nem mesmo por aquilo que diz (que, literalmente, é pouco ou nada), mas só e exclusivamente por aquilo que mostra. 

Ali, a crítica presentifica-se em imagens, mostra ou é mostrada (com uma legenda abaixo ou apenas um título "indicativo"). O exercício crítico é garantido pelo enquadramento geral - de revista de cinema - ou pela assinatura - de um crítico ou realizador conhecido. O resto é um trabalho sobre a imagem que se ABRE ao leitor, potenciando viagens inusitadas, algumas seguramente extrafílmicas, outras intensamente, agora sim, cinematográficas. O modelo "Histoire(s) du cinéma", filme realizado por um cineasta que foi dos mais inventivos críticos de cinema (recordo a célebre recensão a "The Wrong Man", com uma intensiva descrição plano a plano, que muito provavelmente hoje se faria, num blogue, só com stills), prova-se mais funcional que o já "excessivamente" academizado formato do vídeo-ensaio.

Ora, no debate da Cinemateca de Bolonha, o primeiro obstáculo levantado a estes modelos prende-se com a questão da protecção dos direitos de autor afectos às imagens dos filmes. Sem dúvida que é uma limitação, apesar de pessoalmente acreditar que certas limitações potenciam melhores soluções (é a minha costela rosselliniana). Na minha rubrica pansignificações (o nome vem de uma ideia de Barthes que transcrevi aqui), tenho proposto uma espécie de revisão puramente formal da política de autores, olhando para cada corpus a partir "de fora", mais especificamente, usando imagens que estão no domínio público para analisar e relacionar criticamente o cinema. A pansignificação mais popular, o torneio "A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty", pode ser encarada como apenas uma "brincadeira infantil", mas, graças a ela, apercebi-me de uma coisa tão extraordinária quanto isto: é possível chegar-se a certos consensos quase puramente "filmológicos", utilizando uma linguagem, à partida, totalmente estranha à do cinema. 

Submetido a votação, ficou claro e inequívoco que se Bresson fosse jogador de futebol, jogaria à baliza. É de mim ou não será estrondoso que esta conclusão surja assim, tão indiscutível, depois de apenas uma "brincadeira inofensiva para cinéfilo ver"? Nas outras pansignificações, também me tenho apercebido da minha própria evolução, no sentido de encontrar aquilo que Goethe diria ser a imagem primordial ou a Ideia (sinopse) de determinado filme ou conjunto de filmes. Comparando Ford a HawksAkerman a Benning, Cassavetes aos irmãos Safdie ou "cozinhando" bolos de anos para cada cineasta, para cada cinema, ou ainda actualizando a imagem do monólito de "2001" ganhei a certeza de que, por muito longe que estivesse - e estou -, me ia aproximando de uma certa Essência, sendo que, para isso, usava imagens antes de palavras. Será uma linguagem pobre, com deficiências, mas não está tão longe quanto se possa pensar do decadente formato texto nessa grande Procura do tal "inner meaning", como lhe chama o recém-falecido Andrew Sarris na sua "auteur theory".

Não é, aliás, 100% correcto da minha parte afirmar que a crítica oficial não usa imagens, sobretudo se nos lembrarmos desse dispositivo, tão recorrente e banalizado, que são "as estrelinhas e a bolinha preta". A maioria dos leitores terá bem presente a quantidade de informação que podemos extrair olhando apenas para uma dessas imagens tão rudimentares quando atribuídas por determinado crítico (a bola, uma estrela, duas, três, quatro, cinco!). Elas apenas assinalam um valor quantitativo, mas imagine que seja possível elaborar criticamente a partir dessa imagem, juntando outros elementos visuais "estranhos" ao universo imediato do filme... Impossível? Não sei.

Venho, portanto, declarar uma posição que é também um apelo a todos os que não querem ser "agentes passivos" neste mundo em rápida mutação que é, pois acreditem que é, o cinema. Defendo que pela imagem, parada ou em movimento, still, stolen ou found: se salvará e se potenciará, como nunca antes, a crítica de cinema; se constituirá, finalmente, uma crítica cinematográfica, promoção da divisão substantiva a uma conjunção adjectiva, infintamente mais maleável, logo, adaptada à realidade líquida da nossa era digital; a crítica será, também diria "finalmente", um exercício de pensamento com as imagens e não "a favor ou contra" determinadas imagens "tornadas objecto" no texto; a função-crítica dará as mãos à função-cinema, tréguas enfim para a crescente indefinição de fronteiras entre as duas....

No fundo, sugiro que se vá despindo a crítica de palavras gastas e infrutíferas, vestindo-a, ao mesmo tempo, com imagens-ideia significativas; sugiro que se experimente, se arrisque, se erre, se erre de novo e se erre melhor (como diria Beckett) para estabilizar uma nova linguagem crítica sobre o cinema - e que, no processo, se vá produzindo reflexão e se vá discutindo colectivamente cada avanço.

(E contra mim falei, ou não gastei eu palavras e mais palavras para dizer que se calhar estas "estão a mais" e são "demais"? E não irei eu continuar a gastá-las, apesar de tudo? Espero um dia poder combater mais assertivamente esta instalada tendência da crítica fílmica.)

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