quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Desperate Journey (1942) de Raoul Walsh


Decerto alguns dirão que estou a sobrevalorizar um filme datado realizado quase em modo automático por Raoul Walsh, servindo-se de ou sendo servido por uma das maiores estrelas da época na Warner: Errol Flynn. Não me espantam, por exemplo, as duas estrelas que Tag Gallagher dá ao filme - e decerto a sua argumentação passará por "censurar" o tal tom datado e, talvez, algo naive do filme face ao acontecimento histórico que procura traduzir (isto é, trair) na linguagem cinematográfica. Essa crítica faria sentido se não cometesse em si mesma uma injustiça ou não se pudesse descobrir neste filme um ponto de luz em direcção a um mais-que-possível humanismo walshiano. Estou, neste particular, a pensar na rapariga alemã (Nancy Coleman) que dá guarida aos militares americanos, eles que, em disfarces alemães, em plena "boca do lobo", lá vão conseguindo ir bem para lá dos objectivos da missão para a qual foram destacados. Antes de se despedir do herói (Errol Flynn) e seus companheiros, a rapariga pede a estes para passarem a palavra sobre todos aqueles que, como ela, arriscam a vida para combater internamente o nazismo - e em que condições desiguais! Flynn fala alemão, mas ela também fala inglês, contudo, despedem-se os dois com um auf wiedersehen. (Se esta foi "a despedida" no cinema, esta foi "a apresentação" na vida.)

Começa aqui a outra nota da "honestidade" de Walsh (há bocado falava em humanismo, não receio a palavra, mas agora vai esta em sua substituição). Se na maior parte dos filmes americanos sobre a II Guerra Mundial que se seguiram a este os alemães falam um "inglês com sotaque", aqui a língua não só é respeitada nas suas devidas fronteiras culturais e políticas como, por assim o ser, se torna num dos principais instrumentos de acção ou, na realidade, de dissimulação do/no filme. Em "Desperate Journey" temos então, como o título indica, uma viagem toda ela feita nas barbas do inimigo, por isso, os nossos heróis ou se calam para sempre - isso seria um filme mudo e, de facto, no começo temos cerca de 10 minutos sem diálogos... só com a acção das bombas e dos corpos - ou só falam entre si ou, fazendo uso dos dotes linguísticos do líder interpretado por Flynn, muito literalmente se mascaram de alemães. Esse será o primeiro grande "cavalo de tróia": a língua. O segundo é o trabalho sobre a aparência deste grupo de soldados ingleses e americanos, algo que se resolve deitando ao chão meia dúzia de alemães e fazendo da guerra motivo para um carnaval antecipado. A partir daqui, as peles estão completamente trocadas, até entre os soldados inimigos - um dos generais prefere falar inglês com o seu inferior, para não ser percebido pelos outros presentes.

Este jogo com as peles - e com a língua, esse importante "músculo" da acção (aviso: não fui eu que citei aqui Tarantino) - atinge o ponto culminante na sequência impressionante desenrolada na fronteira alemã, quando os falsos soldados do Eixo são recebidos por pai e mãe da rapariga resistente anti-nazi, que referi atrás. Esta não chega a tempo de os receber, pelo que serão os seus simpáticos pais a dar as boas-vindas a esses verdadeiros heróis de guerra da Aliança, dando-lhes de comer e trocando palavras de esperança sobre um futuro livre da ameaça nazi. (Aviso spoiler) Quando a rapariga chega e pergunta de imediato - olhando para a "suposta" mãe - "quem é esta senhora?", os nossos heróis são mais rápidos que o espectador a recuperarem do choque provocado por esta cilada tão perversamente maquinada (era preciso jantarem todos juntos e terem trocado tanta afecção?). Afinal, naquela mesa, os oficiais da Aliança vestidos de soldados do III Reich foram surpreendidos por dois velhotes que no trato e nas palavras se faziam passar por resistentes anti-nazis e pais da rapariga insurrecta, duas coisas que, pelos vistos, estes não eram (fim de spoiler).

Aqui, de facto, a dissimulação é uma simulação constante, a mise en scène do cinema está aqui também ela travestida pela mise en scène (dialéctica) da História: hoje amigos, amanhã inimigos? Não, agora amigos, daqui a 5 minutos inimigos. Ou pior: agora amigos, agora inimigos! De resto, Walsh é impecável a traçar o continuum da acção, não dando qualquer margem para descanso ao espectador... como depois Steven Spielberg veio a fazer, no tempo em que estava no pleno das suas capacidades. (Penso até que está na hora de voltar à fonte e não estou aqui a falar de Ford, mas de Walsh. Aliás, desde quando Spielberg é/deve ser mais fordiano que walshiano?)

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