segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Pursued (1947) de Raoul Walsh


"Pursued" é filme para merecer três ou quatro longos ensaios sobre o género (o gender como sexo e como género fílmico) ou a dimensão psico-sociológica do "sonho" (não, da "memória") do protagonista interpretado por Robert Mitchum. Mitchum, no rosto, na voz e na pose, traz ao filme a ambiência noir quase ao mesmo tempo que o jogo de contrastes, o preto-muito-preto da fotografia a preto-e-branco, e toda a reversão temporal - lá está, psicanalítica ou, se preferirem, "out of the past" - que espoleta a narrativa. No entanto, "Pursued" é, antes de mais, um western, constatação imediata dada pela paisagem, que, no entanto, vai sendo traída (a constatação e a paisagem) em toda à linha à medida que entramos no trauma e nos pesadelos do nosso "herói" - e as aspas já nos estão a colocar, de novo, no território do noir. Segundo especialistas como Scorsese*, este terá sido o primeiro western noir da história do cinema, o que denuncia de imediato um traço nem sempre tido em conta no cinema de Walsh (que já tinha salientado na minha análise a "The Big Trail"): o seu grau de rigor e "competência" paredes-meias com uma "fúria" secreta pela experimentação fílmica.

Se, como diz Jacques Lourcelles, "The Big Trail" funcionava como grande documentário épico, quase metafísico, disfarçado de filme de cowboys, "Pursued" é um noir atormentado, por vezes perverso na sua indiferença moral, que usa e se deixa usar pela paisagem do western clássico. Disse atrás "fúria" para caracterizar esse Walsh secreto que procura sabotar os géneros que tanto ajudou a cristalizar. Disse-o a pensar em "The Furies" de Anthony Mann, filme que me parece claramente dever o mundo a "Pursued" - aliás, se me tivessem mostrado este filme de Walsh, sem indicação quanto ao seu realizador, eu diria estar na presença de um filme de Anthony Mann, dada a carga trágica que corre nas veias de uma família que mutila e se auto-mutila... Mas não, é mesmo um "filme de Raoul Walsh". E como ver nele a sua assinatura, o seu "toque" autoral? Arrisco - porquanto dizer que Walsh é um auteur antes ou depois de um puro metteur en scène soará a heresia em certos círculos - começar pela personagem feminina, interpretada por Teresa Wright. É certo que Walsh é um realizador predominantemente masculino, mas, talvez por isso mesmo, as suas mulheres estão muitas vezes marcadas pela mesma dose de incompreensibilidade.

A personagem de Wright, por exemplo, no seu plano louco para se vingar do "amor da sua vida" revela a mesma neurose, o mesmo "desvio" que outras mulheres walshianas, como desde logo Ida Lupino no já de si esquizóide "They Drive By Night" ou Marlene Dietrich no ironicamente intitulado "Manpower". Este trio feminino, diria fatídico, traça em linhas carregadas um triângulo que vai apertando, quase até estrangular, o pobre macho walshiano, homem viril, certo, mas outrossim emocional e indefeso - a apoteose sendo James Cagney em "White Heat", ainda que não distante de Mitchum aqui, em razão da sua relação edipiana com uma "providencial" figura materna... Se a personagem feminina de "Pursued" é fria e calculista no seu plano revanchista para liquidar o "amor da sua vida", o homem aspira apenas resolver um enigma passado que o obceca ou que, como diz o título, "o persegue". A característica neurótica em Teresa Wright está, obviamente, na oscilação entre o amor e o ódio, como acontecia em Ida Lupino em "They Drive by Night" com a personagem de George Raft. As duas personagens recorrem ao homicídio com a mesma dedicação com que amam o "seu homem". A diferença fundamental aqui é que Teresa Wright pode ter Robert Mitchum, ao passo que Ida Lupino nunca conseguirá conquistar George Raft. (De qualquer modo, há qualquer coisa que liga as mulheres de Walsh aos "anjos fatais" de Otto Preminger...)

A violência daquela paixão levada ao paroxismo nasce de um traço que resulta particularmente perturbante: a natureza incestuosa da relação que une Mitchum a Wright. Mesmo sendo irmãos adoptivos, a relação que os une, como o protagonista do filme, faz-se à sombra do passado mais distante, isto é, das recordações da sua infância, que teria sido perfeita não fossem os ciúmes de Adam, o irmão natural de Wright. Se antes eram irmãos inseparáveis, agora preparam-se para se unir em matrimónio para toda vida ou, para ser mais exacto, "até que a morte os separe". Ninguém no filme se escandaliza particularmente com esta decisão, facto espantoso que nos relembra que neste filme pouca coisa há para lá do universo mental, factício, separado do real, de Mitchum. Face a um comportamento desviado, que transforma irmã em noiva, Walsh não se desvia um milímetro do percurso traçado pelo protagonista e que deverá desfechar com a resolução do mistério que o obceca. Esta opção, irrealizante, justifica-se, claro está, porque todo o filme se passa na cabeça de Mitchum: é ele que nos conta a forma como tudo se passou, é ele que "vindo do passado" (de novo pisco o olho ao filme futuro de Tourneur, também com Mitchum) nos presenteia - isto é, torna presente - a sua visão do que já lá vai. Dito de outro modo: ele é o metteur en scène aqui.

Mas a sua visão é, como todas são, uma parte implicada na experiência, logo, a naturalidade de um sentimento como o amor que sente ou o ódio que lhe é dirigido é destruída pelos excessos resultantes de uma realidade filtrada por um ego ferido e angustiado. A neurose de Wright é a neurose de Mitchum, resolver a segunda será resolver a primeira - e, por isso, Walsh não se desvia do percurso e, como bom cineasta das linhas rectas que é, dá pouca atenção ao significado psico-social (diferente de sócio-psicanalítico) das acções das suas personagens. Wright bem diz, no início, que Mitchum está a "imaginar coisas", ao que ele responde "não, estou só a lembrar-me". Depois o filme entra na "lembrança", mas não há nada de objectivamente distinto entre os produtos da imaginação e os produtos da lembrança, daí que as fronteiras morais ou uma certa consciência social "muito naturalmente" se fantasmagorizem à medida que a narrativa avança. Por tudo isto, entrar em "Pursued" é entrar em território proibido, onde as regras de género (do sexo e do cinema) são tão incertas quanto certas são as regras do nosso mundo, ele que é definido aqui da seguinte forma: tudo o que desabita a cabeça de Mitchum. Fora da sua zona de conforto, ao espectador cabe a missão de a habitar.

* - Refiro aqui o único extra da edição em Blu-ray de "Pursued", que pode ser adquirida aqui.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não conheço o filme, mas fiquei curioso, até porque tenciono fazer um ciclo sobre Noir no meu blog em breve.

Excelente artigo! Abraço.

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